quinta-feira, 27 de março de 2014

Edição número 56

Rafael Toral fala-nos do seu Manifesto
Para acompanhar no podcast.
A discussão impõem-se.


I
Da fundamentação

a) A música é e sempre foi uma actividade humana, uma manifestação de seres dotados de capacidade de livre escolha, consciência de si próprios, ímpeto criativo, e capacidade de julgar e adoptar critérios.

b) Dos seus primórdios até hoje, a música electrónica tem sido fundamentada principalmente na tecnologia. Seja no comportamento de circuitos, técnicas de síntese, computação, manipulação de registos gravados ou estratégias de composição em estúdio, a maioria das suas práticas passadas e correntes toma a sua configuração tecnológica de base como valor principal. Os aspectos humanos (físico, mental e espiritual) da performance têm assumido um valor secundário, especialmente aqueles que resultam de decisões livres. A própria designação "música electrónica" revela estes valores.

c) A criação musical, sendo uma actividade humana, não deve fundamentar-se na tecnologia mas, naturalmente, no músico. Formas artisticamente relevantes tendem a não ter a sua própria tecnologia como assunto. A música, independentemente da forma (exceptuando formas generativas), género ou processo criativo, fundamenta-se nas livres decisões do músico.


II
Da designação

a) A música electrónica tem aproximadamente cem anos, e já desenvolveu maturidade substancial enquanto prática artística. Contudo, não atingiu a sua emancipação cultural enquanto género musical. Entende-se aqui por emancipação cultural a apreciação de um género musical pelas suas características formais, estéticas e espirituais, independente do tipo de recursos instrumentais usados.

b) A designação "música electrónica" refere-se ao tipo de tecnologia usado na sua criação. É uma anomalia cultural que um género musical seja definido pelos instrumentos que nele são usados (não se usa a designação "música de saxofone", por exemplo), e isso demonstra a sua falta de emancipação cultural.

c) Nas suas primeiras décadas, a um tipo de expressão artística então inovadora e revolucionária chamou-se genericamente "música electrónica". Hoje, porém, os recursos instrumentais da música electrónica são comuns a múltiplos géneros musicais (techno, académica, glitch, ambient, experimental, noise, minimalismo, etc.), mas estes continuam a usar indiscriminadamente a designação "música electrónica". Já não se justifica aplicar a mesma designação a práticas musicais que apenas têm em comum a utilização dos mesmos recursos tecnológicos.


III
Conclusão

a) A música enquanto realização humana (física, mental e espiritual) é um valor principal.

b) A música enquanto realização tecnológica é um valor secundário.

c) A designação "música electrónica", ao englobar expressões musicais que pouco têm em comum, deixou de ser útil e tornou-se vazia de significado. A emancipação cultural da criação musical com uso de meios electrónicos requer que a expressão "música electrónica" deixe de ser utilizada para como referência, referindo-se antes ao seu verdadeiro género ou estabelecendo um novo.


Rafael Toral
Europa, 21 de Junho de 2012